por: Maria Cristina RielleÉ possível, ao mesmo tempo, gostar e não gostar do documentário Cartola. Trata-se de um filme que busca retratar o compositor carioca, sem ser uma cinebiografia convencional, aquela com estrutura básica, tempo linear e repleta de detalhes. Para gostar, plenamente, é preciso que o espectador esteja aberto às experimentações. Entretanto, ainda que não esteja, é difícil não apreciar a criatividade e o talento de um grande compositor, difundidos na tela, por meio de canções primorosas. Daí, a contradição de sentimentos diante de uma narrativa construída fora dos cânones tradicionais, que entrelaça ficção e documentário. Nessa película, dirigida e roteirizada pelos pernambucanos
Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, a música interpreta e revela Cartola. É ela que mostra as especificidades desse homem simples e do seu mundo periférico, onde, apesar da pobreza e da exclusão, vivem também a alegria e a criatividade.
O artista Cartola se faz presente na sua obra. Um homem que foi pedreiro, lavador de carros e contínuo do Ministério da Agricultura, criou versos à prova do tempo, em canções que servem à toda alma humana. E, no entanto, só conseguiu gravar o seu primeiro disco aos 66 anos. Esse documentário não reconstitui a vida de Cartola, didaticamente. É uma mistura de cenas de arquivo, por vezes mal conservadas. Chega a incomodar a constatação de que imagens feitas de um tempo, que nunca voltará, tenham sido tão livremente deixadas aos efeitos dos anos.
Há cenas de filmes e documentários de época, que servem para compor uma parte da história do Brasil, com suas diferentes realidades: a Bossa Nova, o país de JK, a ditadura. Além disso, os diretores ilustram certas passagens com diálogos da ficção cinematográfica, usando cenas de outros filmes, como as chanchadas da década de 1950 e o Cinema Novo. Pode-se citar, por exemplo, Aviso aos Navegantes, de Watson Macedo, em que o trecho mostrado, com Oscarito e José Lewgoy, serve para referir um Cartola mulherengo. Ou, ainda, o uso de imagens de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, para ilustrar o problema da compra e venda de sambas.
Há um excesso de colagens, principalmente na primeira parte do documentário. Mas, aos poucos, sobressai o compositor e a sua arte, na sucessão de
músicas cujas letras são eternas e tocantes, com temas da vida cotidiana.
Ao som do samba “Sala de Recepção”, de Cartola, são mostradas imagens do morro da Mangueira, suas lojinhas velhas, seu povo sorridente e meninos brincando com carrinhos de rolimã. Mas na letra da canção, o compositor indaga: “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?". Em tudo, no entanto, persiste a alegria do subúrbio carioca. Num Brasil de contradições, o morro canta e dança. E em sua identidade boêmia, é mais samba, pandeiro, violão e cavaquinho.
Cartola, cujo nome de batismo era Angenor de Oliveira (prenome assim grafado por erro de um escrivão) nasceu no bairro do Catete, em 1908. Só aos onze anos, por problemas financeiros, mudou-se com a família para a Mangueira. Ele participou da fundação da escola de samba daquela comunidade, em 1928, e escolheu para ela as cores verde e rosa. Morreu em 1980, vítima de um câncer, legando à música brasileira canções imortais de grande lirismo.
Esse documentário focaliza a trajetória pessoal e musical de Cartola, privilegiando o compositor na narração da sua história. No entanto, a presença dos amigos, parceiros (como
Carlos Cachaça e
Zé Kéti) e familiares, com seus depoimentos, também contribuam para desenhar o perfil desse sambista carioca. Assim, o documentário começa com o enterro de Cartola e usa cenas do filme Brás Cubas, de Júlio Bressane, uma adaptação da obra de Machado de Assis, para ilustrar a idéia de um defunto que é o narrador e reinterpreta a sua própria vida.
Os diretores classificam esse filme como um documentário musical, sem, todavia, se deixar engessar num gênero. Ele é um mosaico de imagens, em que ficção e documentário se entrelaçam, constituindo uma forma diferente de ilustrar a vida de Cartola. Quase no final, o compositor passeia pelas ruas do Rio, ao som da canção Autonomia. Uma câmera em travelling leva o espectador a caminhar com o artista, experimentando, por um instante, a beleza criativa daquele tempo. Para aqueles que não gostarem das tantas colagens, resta, ainda, apreciar a trilha sonora notável, permeando uma época, um artista e uma cidade que ainda é tão bela quanto os versos líricos de Cartola.
CARTOLA Brasil, 2006
Direção: Lírio Ferreira e Hilton Lacerda
Produção: Clélia Bessa, Hilton Kauffmann
Roteiro: Lírio Ferreira, Hilton Lacerda
Fotografia: Aloysio Raolino
Trilha Sonora: Cartola
Duração: 88 min.
Gênero: Documentário
Marcadores: Crítica Cartola